Natália P. de Castro
Reflexão: eu não vou dormir com esse barulho sozinha - veneno para a população vulnerável brasileira

Hoje trataremos de um assunto que já tem me incomodado há algum tempo, só que foi motivado pela pesquisa recente realizada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC). Esta semana, o IDEC divulgou o resultado de uma pesquisa, intitulada “Veneno no Pacote”, disponível para download no site do IDEC, em que aponta a presença de agrotóxicos nos alimentos ultraprocessados. Esse achado é importante, porque novamente coloca a moderação do consumo dos alimentos ultraprocessados como questão central para a manutenção da saúde. O “novamente”, porque os alimentos ultraprocessados já são conhecidos pelo alto teor de sódio, açúcares e gorduras saturadas, que, quando consumidos em excesso e em longo prazo, contribuem para problemas cardiovasculares, diabetes tipo 2 e obesidade.

Nos nossos textos anteriores, falamos de alimentos ultraprocessados quando mencionamos o Guia Alimentar para a População Brasileira, que a nossa nutri Andrea D´Agosto Toledo já destrinchou para gente. Mas, para que possamos discutir os achados do IDEC, acredito ser importante definir o que são os alimentos ultraprocessados. Simplificando, pode-se dizer que os alimentos ultraprocessados são aqueles que não nos lembram, em quase nada, o alimento original ou in natura. São eles: salgadinhos de pacote, refrigerantes, sorvetes, entre outros tantos produtos disponíveis e prontos para o consumo.

Agora aos agrotóxicos. Primeiramente, já falamos sobre agrotóxicos aqui no NutS. A nossa nutri Clarissa Fujiwara explicou os malefícios do consumo imediato ou crônico desses venenos e ainda nos deu a dica de uma ferramenta para encontrarmos feiras orgânicas na cidade onde moramos. Mas precisamos retomar alguns pontos para esse texto: agrotóxicos são substâncias
“químicas sintéticas usadas para matar insetos, larvas, fungos, carrapatos sob a justificativa de controlar as doenças provocadas por esses vetores e de regular o crescimento da vegetação, tanto no ambiente rural quanto urbano. Os agrotóxicos têm seu uso tanto em atividades agrícolas como não agrícolas. As agrícolas são relacionadas ao setor de produção, seja na limpeza do terreno e preparação do solo, na etapa de acompanhamento da lavoura, no deposito e no beneficiamento de produtos agrícolas, nas pastagens e nas florestas plantadas” (INCA, 2019)
Há cerca de 1000 agrotóxicos usados ao redor do mundo para garantir que os alimentos não sejam destruídos por pragas. Alguns deles, os mais antigos, como o DDT (usado no combate à malária) e o Lindano, permanecem no solo e na água durante anos. O uso de muitos desses agrotóxicos (ou poluentes orgânicos persistentes- POPs) foi proibido nos países signatários da Convenção de Estocolmo, assinado, inclusive, pelo Brasil, em 2001 e ratificado em 2004. Aqui, só para criar um burburinho, os Estados Unidos assinaram o tratado em 2001, mas não ratificaram, tornando-os não signatários do Tratado de Estocolmo de 2001.

O uso/consumo dos agrotóxicos pode ter consequências imediatas e em longo prazo. Os estudos focam mais nos trabalhadores responsáveis pela aplicação dos produtos no solo e plantações (risco ocupacional), nos quais, pelo tempo de exposição prolongado, as consequências são mais visíveis e devastadoras. Dentre problemas mais frequentes estão afecções cutâneas (alergias), infertilidade, problemas respiratórios e câncer. Mas, o consumo de agrotóxicos é ainda mais preocupante (por atingir número muito maior de pessoas): segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), foram registradas mais de 20 mil mortes causadas pela ingestão desses poluentes orgânicos.
No Brasil, o consumo de agrotóxicos é elevado. Segundo os dados mais recentes da FAO (atualizados em 2020, mas sobre o ano de 2018), o Brasil utilizou uma média de 5,94 kg de pesticidas por área cultivada em 2018, mais que o dobro da quantidade média de pesticidas usada pelos Estados Unidos – 2.54 kg por área cultivada. E nos últimos três anos, outros 493 agrotóxicos foram autorizados para uso no Brasil (Ministério da Agricultura, 2021). Portanto, a quantidade de agrotóxicos por área cultivada no Brasil no ano de 2018 já deve, certamente, ter sido superado. Aguardemos os registros oficiais.

Uso de agrotóxicos (kg) por área cultivada em 2018. Fonte: FAO, 2020.
Em paralelo, a obesidade tem aumentado no Brasil. Temos muitas referências que indicam esse aumento de sobrepeso e obesidade na nossa população, vide Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF, 2018-19) e o Vigitel (2019). Aprendi nos meus anos de atendimentos e projetos, que uma boa estratégia para modificação do hábito alimentar não é restringir alimentos que sabemos não fazerem bem à saúde (que deve ser um processo mais longo e gradual), mas estimular o consumo dos alimentos que sabemos fazerem bem à saúde. Assim, frequentemente sugerimos o aumento do consumo de verduras/legumes/frutas. Sempre questionei o papel dos agrotóxicos dentro destas recomendações. É claro, a preferência deve ser sempre por alimentos orgânicos (cuja produção não envolve, em nenhum dos processos, o uso de agrotóxicos). Na impossibilidade de consumir alimentos orgânicos, que são mais caros que os alimentos não orgânicos (com todos os problemas evolvidos na sua produção), será que ainda assim é válido comprar alimentos in-natura, produzidos com a utilização de venenos para pragas? Aqui sempre fiz reflexão de custo/benefício. Afinal, para a população com obesidade, o melhor talvez seja consumir as frutas/legumes/verduras, independentes do seu modo de produção. O risco de apresentar problema de saúde em decorrência da obesidade é maior que o risco de consumir um alimento com agrotóxico (o risco de morte por obesidade é, sem dúvida, maior). No mais, evitar alimentos que sabemos serem mais contaminados com agrotóxicos, como morangos e pimentões, além de higienizar adequadamente os alimentos in-natura, processo que reduz bem a quantidade de agrotóxicos desses alimentos, é suficiente para mantermos a saúde dos nossos pacientes.
Embora esta seja uma solução plausível, para mim, a sensação é de total e absoluto desconforto. Como assim? Apenas quem tem dinheiro tem acesso à alimentos sem veneno?
Outro dilema: apesar de procurarmos nunca recomendar alimentos ultraprocessados/processados como parte da rotina alimentar, reconhecemos a importância da indústria de alimentos para facilitar a vida dos nossos pacientes e orientamos quanto as melhores escolhas possíveis. Afinal, as vezes não temos molho de tomate caseiro pronto para uso, não é mesmo?
A pesquisa do IDEC me trouxe outra sensação de absoluto desconforto. Pois a nossa população mais vulnerável, que aumentou em decorrência da pandemia do COVID-19, e que não tem acesso a alimentos orgânicos, também consomem os alimentos ultraprocessados. Vejam, aqui não falo que a população mais rica não esteja também consumindo esses produtos. Falo apenas que a nossa população mais vulnerável é a que não tem opções.

Sugiro a leitura do material do IDEC, que está interessantíssimo. Eles não avaliaram todos os alimentos e nem pesquisaram todos os agrotóxicos e, mesmo assim, os resultados são assustadores. Abaixo, selecionei apenas os resultados obtidos com a bisnaguinha.

Reprodução IDEC, 2021.
Para dúvidas e sugestões, entrem em contato com a gente pelo nosso e-mail ou redes sociais.
Referências
https://idec.org.br/veneno-no-pacote
https://www.nutsnutritionscience.com/single-post/2017/05/22/mapa-de-feiras-organicas
https://www.inca.gov.br/exposicao-no-trabalho-e-no-ambiente/agrotoxicos
https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/pesticide-residues-in-food
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34068255/
https://cee.fiocruz.br/?q=node/1002
http://www.fao.org/faostat/en/#data/EP/visualize
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101742.pdf pof